Na última semana, o cenário geopolítico global foi abalado pela notícia de que a Ucrânia realizou um ataque dentro do território russo, especificamente na região de Kursk. De acordo com diferentes relatos, as forças ucranianas controlam atualmente uma área de cerca de 35 km², com a profundidade da incursão variando entre 12 e 35 km dentro da Rússia. Esta movimentação estratégica, que marcou a primeira incursão militar estrangeira em território russo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, levantou uma série de questões críticas sobre os objetivos e a lógica por trás da ação ucraniana.
À primeira vista, a decisão da Ucrânia de desviar recursos e esforços para um ataque no território russo pode parecer uma manobra arriscada e até mesmo irracional, especialmente se considerarmos os princípios tradicionais de guerra simétrica. No entanto, para compreender plenamente essa operação, é necessário abandonar o conceito de guerra simétrica e adotar uma perspectiva de guerra assimétrica, onde táticas e estratégias criativas e inesperadas são utilizadas por forças mais fracas para enfrentar adversários mais poderosos.
A guerra assimétrica é caracterizada por uma disparidade significativa entre os oponentes, não apenas em termos de recursos e poder militar, mas também em termos de táticas. Um exemplo clássico de guerra assimétrica pode ser encontrado na Bíblia, na história de Davi e Golias, onde o pequeno Davi derrotou o gigante Golias utilizando uma estratégia inesperada e engenhosa. Esta narrativa encapsula perfeitamente a abordagem ucraniana no conflito atual, onde a Ucrânia, claramente inferior em termos de poder bélico convencional, busca explorar as vulnerabilidades russas por meio de táticas inovadoras.
Sob essa ótica, a incursão em Kursk não é apenas uma tentativa de desviar as forças russas do leste ucraniano, mas sim uma operação com múltiplos objetivos políticos, psicológicos e militares. Em primeiro lugar, a ação demonstra que a Ucrânia é capaz de levar a guerra para dentro do território russo, desafiando a percepção de invulnerabilidade que Moscou tenta manter. Esta é uma mensagem não apenas para o Kremlin, mas também para a comunidade internacional, incluindo os aliados ocidentais da Ucrânia.
A incursão ucraniana em Kursk tem implicações profundas para a política interna russa. Desde o início da guerra, o governo russo tem procurado controlar a narrativa, apresentando a “operação militar especial” na Ucrânia como uma medida de defesa necessária contra ameaças externas. No entanto, a entrada de tropas ucranianas em território russo desafia essa narrativa e expõe a vulnerabilidade do Kremlin, tanto internamente quanto internacionalmente.
A resposta russa à incursão foi decretar uma operação antiterrorista, conduzida pela Guarda Nacional e pelo FSB, ao invés de uma resposta militar direta. Esta decisão pode ser interpretada como uma tentativa de minimizar a gravidade da situação e evitar um confronto militar que poderia resultar em um desastre para as forças armadas russas, especialmente se considerarmos que as tropas ucranianas envolvidas são altamente treinadas e bem equipadas, em contraste com as forças russas, que em muitos casos são compostas por recrutas sem experiência de combate.
Além disso, a operação ucraniana tem o potencial de aumentar ainda mais o descrédito da administração pública russa. A percepção de que o Kremlin é incapaz de proteger seu próprio território pode minar a confiança da população nas autoridades e no próprio Vladimir Putin, que, até agora, conseguiu manter sua imagem relativamente intacta. No entanto, o crescente descontentamento com a administração pública, exacerbado por eventos como a marcha do Grupo Wagner liderada por Yevgeny Prigozhin, sugere que a legitimidade do governo russo está sob pressão crescente.
Um dos aspectos mais intrigantes dessa incursão é a maneira como ela desafia o tabuleiro de xadrez geopolítico. Durante todo o conflito, o Ocidente, liderado pelos Estados Unidos e pela União Europeia, tem sido cauteloso em seu apoio à Ucrânia, limitando-se a fornecer apenas o mínimo de armamentos necessários para que Kiev mantenha suas linhas de defesa. Essa cautela é amplamente motivada pelo medo de provocar uma retaliação nuclear por parte da Rússia, um risco que tem sido amplamente explorado pelo Kremlin em suas ameaças veladas.
No entanto, a incursão ucraniana em Kursk sugere que a Ucrânia está disposta a testar os limites dessa cautela. Ao levar a guerra para dentro da Rússia, Kiev parece estar enviando uma mensagem clara: é possível desafiar Putin sem desencadear uma resposta nuclear. A reação russa até agora, que foi limitada à decretação de uma operação antiterrorista e não envolveu uma escalada militar significativa, parece corroborar essa avaliação.
Ainda assim, a incursão levanta a questão de até onde a Ucrânia está disposta a ir em suas provocações. Enquanto Kiev busca demonstrar que pode atacar o território russo sem desencadear uma catástrofe nuclear, o risco de uma escalada permanece. A situação é delicada, e qualquer passo em falso pode ter consequências desastrosas para ambas as partes.
O apoio ocidental à Ucrânia tem sido um fator crucial na resistência ucraniana até agora. No entanto, esse apoio tem sido limitado, com os Estados Unidos e a Europa fornecendo apenas o suficiente para manter o conflito em um impasse. Isso levou a uma guerra de atrito no leste da Ucrânia, onde as forças de ambos os lados têm se engajado em combates de trincheiras que lembram os horrores da Primeira Guerra Mundial.
A estratégia do Ocidente, ao que parece, é evitar uma vitória rápida e decisiva de qualquer das partes, na esperança de que um conflito prolongado desgaste as forças russas e leve a um acordo de paz favorável. No entanto, essa abordagem tem suas limitações. A Rússia, apesar de sofrer pesadas baixas e enfrentar sanções econômicas severas, ainda possui recursos significativos e a capacidade de prolongar a guerra indefinidamente. Por outro lado, a Ucrânia, mesmo com o apoio ocidental, está enfrentando uma situação cada vez mais precária, com suas forças militares sob constante pressão e sua infraestrutura sendo devastada pelos ataques russos.
Nesse contexto, a incursão em Kursk pode ser vista como uma tentativa desesperada de romper o impasse e forçar uma mudança na dinâmica do conflito. Se Kiev conseguir manter uma presença estável dentro do território russo, isso poderia levar o Ocidente a reconsiderar sua estratégia e aumentar o apoio militar à Ucrânia, incluindo o fornecimento de armamentos mais avançados e modernos.
Outro aspecto importante da incursão ucraniana é seu impacto nas infraestruturas energéticas da Rússia. Nos últimos meses, a Ucrânia intensificou seus ataques a refinarias e instalações de energia dentro da Rússia, na tentativa de minar a capacidade do Kremlin de financiar a guerra através das exportações de petróleo e gás. Embora a Ucrânia tenha evitado danificar a instalação de Surja, por onde passa grande parte do gás exportado para a Europa, outros alvos foram atingidos, resultando na proibição temporária da exportação de gasolina pela Rússia.
Esses ataques têm como objetivo não apenas enfraquecer a economia russa, mas também enviar um sinal ao Ocidente de que a Ucrânia está disposta a escalar a guerra econômica contra Moscou. A estratégia é clara: quanto mais debilitada a economia russa, menor será a capacidade do Kremlin de sustentar o esforço de guerra. No entanto, essa abordagem também carrega riscos, especialmente no que diz respeito às relações da Ucrânia com seus aliados europeus. Se os ataques ucranianos resultarem em interrupções significativas no fornecimento de energia para a Europa, isso poderia levar a uma reação adversa de países que dependem do gás russo, colocando Kiev em uma posição diplomática delicada.
A incursão ucraniana em Kursk é um movimento ousado e calculado, com implicações profundas tanto para o conflito em curso quanto para a geopolítica global. Ao desafiar a Rússia em seu próprio território, a Ucrânia não apenas busca desestabilizar o Kremlin, mas também testar os limites do apoio ocidental e da paciência russa.
Embora a operação em Kursk tenha sido bem-sucedida até agora, o futuro permanece incerto. A resposta russa, tanto militar quanto política, ainda está em desenvolvimento, e as próximas semanas serão cruciais para determinar se a Ucrânia conseguirá manter sua posição ou se enfrentará uma retaliação esmagadora.
O que é certo, no entanto, é que essa incursão marcou um novo capítulo na guerra entre Ucrânia e Rússia, um capítulo que poderá ter consequências duradouras para ambos os países e para a ordem mundial como um todo. A estratégia ucraniana de guerra assimétrica mostrou-se eficaz até agora, mas os desafios que se avizinham são enormes, e o desfecho desse conflito está longe de ser definido.