A independência da indústria de defesa russa de componentes estrangeiros vem sendo discutida desde a independência da União Soviética. Muitas conversas, muito dinheiro gasto, mas quase nenhum resultado. Com a anexação da Crimeia, essa questão se tornou ainda mais relevante. Primeiro, por causa das sanções econômicas. Segundo, por causa da interdependência entre os complexos industriais e militares russos e ucranianos.
Um outro problema tem sido o relacionamento entre as Forças Armadas e o Complexo Militar-Industrial russo. Por um lado, os militares costumam reclamar que o setor industrial é incapaz de atender a demanda nos processos de aquisição de equipamentos e que a qualidade é baixa. Por outro lado, o setor industrial reclama que as Forças Armadas não sabem o que querem, incluindo especificações e requisitos técnicos. Em outras palavras, que o planejamento é ruim.
É que a partir de 2008, o lobby industrial militar conseguiu impor suas especificações e normas às Forças Armadas. Em 2012, o então ministro da Defesa Anatoly Serdyukov chegou a chantagear o Complexo Industrial-Militar, dizendo que “se você não nos fornecer o que queremos, compraremos sistemas estrangeiros out of the shelf.” Esse foi um dos fatores mais críticos para Serdyukov ser substituído pelo menos contencioso Shoigu. Não funcionou como esperado. Os funcionários do Ministério da Defesa continuaram defendendo os interesses do setor industrial. Putin decidiu então reativar a Comissão Militar-industrial (em russo “VPK”). Seu papel tem sido o de uma plataforma de coordenação entre o Ministério da Defesa e a indústria para harmonizar interesses. Desde 2016 também promover a substituição de importações e estimular o desenvolvimento tecnológico.
Em 2016, foi divulgado que a produção de cerca de 800 sistemas de armas depende de componentes estrangeiros da OTAN e dos países da UE, e o Conselho de Segurança retomou as discussões sobre substituição de importações. Embora essa discussão esteja em pauta há décadas e vastas somas de dinheiro tenham sido gastas, o resultado é pífio. Desta vez, o VPK pediu à indústria doméstica que substituísse 127 itens. Um ano depois, em 2017, eles conseguiram sete. Não há informações mais recentes.
O volume de sistemas de dupla utilização civil é deveria aumentar em 30% em 2025 e em 50% em 2030. A lógica é seguir o mesmo modelo dos Estados Unidos desde a década de 1950, o do complexo industrial militar e do keynesianismo militar. Há uma boa estória sobre isso. É real. Quando os americanos tiveram que ir ao espaço, enfrentaram um problema. Como escrever com uma caneta-tinteiro sem gravidade? Eles desenvolveram uma caneta para isso, que deu a base técnica para as canetas modernas que usamos hoje. E a União Soviética? Eles usaram um lápis.
E este é o maior problema. A maior parte da tecnologia que a Rússia possui ainda é dos tempos soviéticos. Não há financiamento sério para os programas de pesquisa e desenvolvimento. Os russos também estão convencidos que o melhor é explorar possíveis interações com o setor de petróleo e gás, que carece de complexidade econômica. Embora a idéia pareça boa no nível setorial, o resultado não será desenvolvimento econômico nem a redução da dependência de tecnologias ocidentais.
Outro problema sério para a indústria militar russa tem sido a guerra com a Ucrânia. Antes da anexação da Crimeia e do conflito no da Ucrânia, cerca de sessenta empresas ucranianas produziam motores de navios, aeronaves e seus componentes para os militares russos. Inclusive os principais componentes de armas nucleares, como o sistema de mísseis R-36M e o míssel RS-20 Voyevoda RS-20, que na OTAN é conhecido como SS-18 SATAN. Ele foi desenvolvido na década de 1980 pelo Dnepropetrovsk Design Bureau “Yuzhny” e produzido no mesmo local pela “Yuzhmash”. O Ministério da Defesa da Rússia anunciou planos de descartá-lo, mas, ao mesmo tempo, há informações de que sua vida útil será prolongada. A conclusão óbvia é que os russos ainda não têm um substituto para esses sistemas.
A implantação dos mísseis SARMAT está prevista para não antes de 2021. Outro exemplo é o TOPOL-M, que foi desenvolvido na fábrica Arsenal de Kiev. Há rumores de que eles serão retirados de serviço em 2021 para serem substituídos pelos sistemas de mísseis Yars e Yars-M fabricados na Rússia.
Os planos de produção dos novos navios de guerra também tiveram que ser ajustados, porque a Rússia não produz motores de navios modernos. No início do programa de modernização, o Ministério da Defesa usava os motores de turbina a gás produzidos pela empresa ucraniana Zorya-Mashproekt. Navios foram projetados para usar esses motores incluem o Projeto 11356 “Guardas de Patrulha”, o Projeto 22350 “Fragatas” e o Projeto 21956 “Contratorpedeiros Multifuncionais”. Em setembro de 2019, o governo russo anunciou que a Companhia Unida de Motores, a NPO Saturno (Rybinsk, região de Yaroslavl) e o OJSC Klimov de São Petersburgo substituiriam os motores ucranianos. Não há previsão para o comissionamento dos novos navios.
Alguma substituição de importação vem acontecendo em motores de helicópteros. A Kazan Helicopters e a JSC Kamov, que produzem as séries Mi e KA de helicópteros, tradicionalmente utilizavam motores produzidos pela empresa Zaporizhzhya Motor Sich da Ucrânia. Agora eles estão recebendo o motor Rostech VK-2500, que é mais caro e ainda depende consideravelmente de componentes estrangeiros.
Os veículos aéreos não tripulados estão avançando mais. O sistema Forpost-R estava sendo produzido sob uma licença israelense. As empresas russas conseguiram substituir todos os componentes por equivalentes nacionais. Outro drone, o S-70 “Okhotnik” (reconhecimento e ataque), foi totalmente desenvolvido na Rússia e é supostamente capaz de interagir com o caça Su-57 de 5ª geração.
Finalmente, os satélites GLONASS. Até 2014, a participação de componentes estrangeiros era de 70%, principalmente dos Estados Unidos. Hoje é de aproximadamente 40%. O satélite Glonass-K2, com apenas componentes domésticos, deveria estar pronto em 2021, mas não há informações recentes sobre o programa. Provavelmente será postergado.
A substituição de importações foi muito eficaz na promoção do desenvolvimento econômico da Coréia do Sul. Poderia funcionar na Rússia, mas há uma barreira significativa colocada pela falta de novas tecnologias. Antes, era possível promover o desenvolvimento de forma independente. A tecnologia era livre. Hoje, existem patentes e propriedade intelectual. Um componente pode usar várias tecnologias de diferentes proprietários. Assim, não é possível desenvolver novas tecnologias isoladas do resto do mundo, especialmente quando pesquisa e desenvolvimento são sub financiados, e os últimos desenvolvimentos tecnológicos significativos ocorreram na década de 1980. Uma alternativa é uma parceria com a China, que tem desenvolvido tecnologia que pode concorrer com a ocidental, mas muitas vezes ignorou as regras internacionais de direitos de propriedade intelectual.
A Rússia pode fazer isso? Provavelmente não. O desenvolvimento baseado em recursos naturais não é sustentável, como discutido pelo grande Adam Smith já em 1786. A Noruega é uma exceção, mas sua economia é complexa. Assim, o desenvolvimento da Rússia pode ser caracterizado como “desenvolvimento do subdesenvolvimento.” Em termos tecnológicos, estará sempre em um processo de catch up, a menos que sejam investidas enormes quantias de dinheiro, mas realmente enormes, em Pesquisa e Desenvolvimento e atração de novos cérebros para o país. Mas quem quer morar na Rússia se pode morar nos EUA ou na Europa? Uma tarefa hercúlea, que provavelmente não acontecerá. Como as guerras são cada vez mais dependentes de novas tecnologias, com o tempo, as capacidades operacionais da Rússia ficarão desatualizadas, forçando as Forças Armadas a confiar no arsenal nuclear para dissuasão e ainda mais em métodos assimétricos de combate.